Luto, um processo contínuo e peculiar - por Cristiane Jatene

Este texto tem o principal intuito de comentar, de destrinchar, uma fala de Cissa Guimarães no programa “Sem Censura”, da TV Brasil, que pode nos ajudar a entender como acontece o luto e, nesse sentido, nos ajudar a compreender um pouco mais sobre a condição humana.

Cada luto é único, mas algumas características são comuns em quem precisa continuar a viver com uma parte de si morta. Morta para o mundo, morta concretamente, e não morta para quem vive o luto. Este é um ponto importante para compreendermos a dor que o luto por morte de alguém causa: aquela pessoa tão viva em nós, na nossa identidade, não está mais presentificada.

Na minha conta do Instagram, gravei três vídeos sobre luto*. 


O primeiro vídeo foi sobre o luto de pessoas amadas, e que nos amavam, que fizeram parte da constituição da nossa identidade, e que morreram.


O segundo vídeo foi sobre o luto de pessoas vivas que se transformaram a ponto de ser impossível a continuidade da relação. As pessoas seguem vivas, mas a  relação morreu. Essas relações, que morrem com a transformação ou a revelação de um ser que nos era familiar e passa a nos ser estranho, podem ser, inclusive, relações de laços sanguíneos, relações de papeis fixos, como dizemos em terapia familiar, pai e filho, sobrinhos, tios, primos, etc.


O terceiro vídeo sobre o tema “luto” foi sobre o luto de situações e projetos que imaginamos e que não aconteceram. Seja dentro de uma relação, de um trabalho, da vida em geral. O luto do que deveria ou poderia ter sido e não foi.


Minha abordagem terapêutica e de pesquisa, a Fenomenologia-Existencial Hermenêutica**, vê o ser humano como um constante vir-a-ser. Essa premissa guarda a ideia de transformação.


Há a transformação biológica, obrigatória, todos nós já fomos bebês, crianças, jovens, jovens-adultos e, com sorte, um dia seremos idosos. 


Além da transformação biológica, obrigatória, há a transformação concreta e a transformação emocional.


A concreta, geralmente, fala daquilo que fazemos no plano concreto. Plantamos árvores? Adotamos ou fizemos filhos? Fomos presentes para nossos familiares e para nossos amigos? Realizamos trabalhos e nos realizamos ou nos infelicitamos com esses trabalhos? Acumulamos o dinheiro que o Capitalismo exige para sobrevivermos? E o dinheiro para vivermos, conseguimos? Perdemos dinheiro? Moramos na cidade onde nascemos, mudamos de cidade, de país?


Deixei a transformação emocional por último porque ela é a mais complexa e é opcional. Amadurecer é um processo longo e difícil. Enxergar a dor do outro, provocada por nossas ações. Ter responsabilidade emocional. Enxergar quem nos faz mal e abrir mão, às vezes, de quem amamos, para nos respeitarmos e pensarmos se o amor que nos machuca pode ser, de fato, chamado de amor. Manter nossa vocação profissional quando não ficamos ricos o suficiente para ter o reconhecimento social, por mais que sejamos profissionais de excelência. Aceitar a morte de pessoas que nos constituíram e continuar a renascermos no ritmo das transformações da vida, mesmo sem alguns pedaços de nós, que partiram com essas pessoas. Honrar as pessoas que ficaram e estão ao nosso lado ou próximas. Continuar a viver no descompasso. O tempo de pessoas enlutadas não é o mesmo da velocidade frenética do mundo capitalista que atropela quem ousar parar "à beira da estrada".


A transformação emocional é a mais trabalhosa. Ao invés de amadurecer pode-se escolher cristalizar-se, emocionalmente, adoecer física e socialmente. Existir para sobreviver ou para competir, sem nem saber qual o prêmio no final ou ainda mentir para si mesmo. Como disse o vocalista da banda Legião Urbana "mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira".


Na segunda semana de abril de 2025, num dos programas, “Sem Censura”, que apresenta na TV Brasil, a atriz e apresentadora Cissa Guimarães, que perdeu seu terceiro filho, quando este tinha 18 anos, atropelado, falou sobre a perda e o processo que tem vivido desde então.


Quero comentar aqui alguns pontos de sua fala, divulgada num “corte”, em vídeo, pela TV Brasil, nas redes sociais.


Ela diz: “Tem dias que estou um pano de chão velho, não é uma coisa que aprendi, tá feito. Eu não superei nada. Aliás, essa palavra me dá um pouquinho de irritação. Eu não superei, não vou superar, não pretendo, não tenho a veleidade de superar a amputação que foi a passagem do meu filho. Eu tenho um coração amputado, eu sou uma mulher amputada. Eu sou uma mulher aleijada. E tenho a certeza, também, de que eu nunca mais vou ser 100% feliz, mas eu acho que eu posso ser 70% e eu vou correr atrás desse 70%, mas assim, eu vou correr pra caramba para ser, porque essa é minha missão aqui também.” A seguir, ela fala dos outros filhos, netos, do trabalho e dos fãs, explica que não só em nome “disso” vai correr atrás dos 70% de felicidade possíveis e continua: “Acho em nome do Rafa (o seu referido filho), para dar dignidade à vida que foi amputada tão cedo dele, eu preciso ser essa mulher em busca da minha felicidade, em honra ao nome dele, em honra à vida dele. Ele me ensinou muito, durante a vida dele, com seus 18 anos de idade, e ele me ensina muito, eu agradeço a ele todos os dias. Todos os dias eu agradeço a ele a pessoa que eu sou (se emociona), porque se não fosse ele eu não teria chegado onde eu cheguei, dentro, as minha elaborações, as minhas aceitações, a minha compreensão dos outros, a minha compaixão com pessoas, assim, ele me ensinou tudo isso. E essa busca que eu tenho de ser feliz, é ele que todo dia me faz. (...). Agora, eu fiz terapia do luto, que é uma coisa que eu acho muito importante, sabe, e repito sempre, já é um lugar comum, as pessoas já estão acostumadas, eu não perdi nada, eu só ganhei. Eu ganhei 18 anos, do maior amor do mundo, que é o amor de um filho.”


Grifei alguns pontos que acho que nos ajudará nessa meditação sobre o tema. Sempre o ser humano “tem dias”, mais assim ou mais assado, nossa tonalidade afetiva não é fixa, portanto nossa forma de vivenciar um ou vários lutos, também “tem dias”. 


Ninguém supera a morte de alguém que constituiu sua identidade, porque estamos sempre dialogando com essas pessoas. É diferente de um amor ou de uma amizade que acabou, estando os dois vivos. No luto por morte, o que podemos superar é a dor do início do luto, a dor do corte. Porque há um corte. Profundo. Na nossa alma, na nossa identidade. Mas, o luto, que se transforma, como se transforma tudo que diz respeito ao ser humano, existirá enquanto a pessoa enlutada existir.


Algum ser humano é 100% feliz? Não. O ser humano enlutado também não. A vida é feita de momentos, fases. Costumo dizer que há muitas vidas numa mesma vida, porque as fases que vivemos podem ser tão diferentes que parecem outras vidas. Há momentos felizes, fases felizes, mas não sei se 100%. Para quem não vive e para quem vive o luto. O que Cissa talvez queira se referir é ao fato de que uma pessoa enlutada tem sempre um lembrete. Como uma torneira que esta pingando e não se ouve durante o dia, mas a noite, quando vem o silêncio se ouve. No nosso silêncio, quando nos ouvimos, ouvimos as partes inteiras e as cicatrizes, o que esta ali e o que esta presente pela ausência.


Outro ponto importante é buscar através da nossa vida, e daquela vida que se foi, mas ainda vive em nós, honrar a vida que que partiu. Caso seja um amigo com quem você pretendia fazer um filme, na parte tardia da vida (como é meu caso), buscar realizar esse filme por si e pelo que se foi pode ser um dos sentidos encontrados na vida. Caso você tenha nascido, fruto de uma gravidez de risco, com o médico propondo interrompê-la e seus pais resolveram que você deveria nascer (como é meu caso) você pode encontrar sentido em honrar o esforço dos seus pais para que você viesse a este mundo, ou seja, a vida interrompida e os planos conjuntos interrompidos, podem lhe fazer estar em contato com a vida que vive dentro de você, embora não esteja mais presente concretamente. Cissa fala em dar dignidade à vida interrompida.


O processo de aceitar um ou mais lutos de uma vez (no meu caso, tive que aceitar dez lutos sequenciais) também nos faz visitar esforços pessoais e emocionais que nos transformam num nível de radicalidade, caso consigamos enfrentar o processo, talvez só comparado a uma experiência de guerra, deslocamento forçado e refúgio. Porque nossa maior segurança, além da segurança material no Capitalismo, é a segurança das relações. Popularmente, “com quem podemos contar”.


Ela fala em “terapia do luto”. Existe um tipo de terapia que é a terapia focal. Geralmente, tem um tempo determinado e vai focar, como o nome diz, num assunto. No início de um luto, não há outro assunto para o enlutado que aceitou entrar no processo e a terapia pode ajudar, e não apenas a psicoterapia com psicoterapeuta, tudo que for terapêutico para a pessoa pode ajudar. Tem pessoas que preferem desenhar do que falar, andar a cavalo, andar de bicicleta. Cada pessoa precisaria se ouvir para saber. A terapia também pode ajudar nessa auto escuta.


Ela fala que fala com o filho. Aqui há um ponto importante. É muito popular a crença de que quem exerce a dimensão espiritual humana tendo uma crença no transcendente ou praticando alguma religião sofre menos. Acreditando ou não em vida após a morte, acreditando ou não em reencarnação, houve um corte irreparável na sua identidade, no curso da sua vida. Vida que "destruiu o chão que você pisava". Daí a expressão popular “fiquei sem chão”.


E, por fim, ela diz que não perdeu, que ganhou aqueles anos com o filho. Parece contraditório alguém dizer que está amputado, aleijado e, a seguir, dizer que não perdeu nada, que ganhou. Quem está amputado ou aleijado é ela, seu coração, sua identidade, pela interrupção da vida com a qual ela vai continuar a se relacionar enquanto viver. Mas, o ganho dos 18 anos compartilhados existem e é justamente por causa desses anos que existe o luto. E a relação continua e é justamente por causa disso que o luto existe. Não se trata do rompimento de duas pessoas vivas que se separaram. 


É bom ter atenção aos nossos lutos, porque a sociedade capitalista não permite pausas, não permite tristeza, não permite falta de energia (o luto suga muita energia) e, por isso, o luto pode se manifestar em rompantes de raiva, em falta de vontade de agir, em medo de formar novos laços e assim por diante. Ele estaria disfarçado, mas não sumiu. Muitas pessoas, inclusive, fazem ou adotam novas pessoas. Não há um julgamento aqui a respeito desses escapes. Mas, o mais indicado para sermos minimamente saudáveis emocionalmente é conseguirmos aceitar nossas dores (e alegrias), convivermos com elas, e nos renovarmos, renascermos, mesmo, apesar e com elas.


#luto #perda #separação #relacionamentos #felicidade #terapiadoluto #psicoterapia #fenomenologiaexistencial


*Minha conta de Instagram, onde estão os três vídeos sobre luto mencionados: cristiane.jatene


**Sugiro a leitura do capítulo “Método” da minha pesquisa de mestrado para uma aproximação maior com a Fenomenologia-Existencial Hermenêutica. Link: https://repositorio.ulisboa.pt/handle/10400.5/98745

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