Autobiografia, literatura terapêutica - por Cristiane Jatene.

 

Nos últimos dias, em setembro de 2025, uma senhora de idade avançada, crítica literária, disse que Ernaux, Nobel de Literatura, que escreve sobre suas experiências, e Edouard Louis, idem, são interessantes, mas não são Literatura.

 

Digo que a senhora tem idade avançada, porque apesar de não ter me apaixonado pelos escritos de Ernaux e Louis, estou perto de chegar aos 60 anos e fui formada por Zélia Gattai (“Anarquistas, graças a Deus”),  Marcelo Paiva (“Feliz Ano Velho”), Simone de Beauvoir (“Uma morte muito suave”), Karen Armstrong (“Escada espiral”), Gay Talese (“Vida de escritor”) e seus escritos autobiográficos, embora tenha gostado de ler Kafka, Camus, Tolstói, Machado, Kundera, Woolf.

 

Mesmo tendo esses livros autobiográficos como os mais importante para mim, essa dúvida sempre me acompanhou, esses escritos são respeitáveis?

 

De lá pra cá, dos meus 12 anos para os meus 58 anos, o que mudou é que não tenho a menor dúvida da importância literária e existencial desses escritos. Em primeiro lugar, esses escritos foram fundamentais para seus autores e exatamente por essa razão foram e continuarão a ser para milhares de leitores mundo afora. 

 

Em segundo lugar, ninguém me garante que os autores de ficção não estão falando da vida deles, com roupagem de ficção.

 

O que é que temos de mais legítimo além de nossas experiências vitais?

 

Em terceiro lugar, meus pintores favoritos, Edward Hopper e Van Gogh pintam seus “quintais”. A série que mais gosto do artista plástico brasileiro Claudio Tozzi, e gosto imenso de sua obra, é a série na qual ele retrata, claro, a seu modo, com base em sua experiência (autobiograficamente) as figuras humanas das “Batalhas da Rua Maria Antônia”[i]. Ele é hoje um senhor que sente pena de que o Brasil que a geração dele sonhou, bem vivenciados nas “Batalhas da Rua Maria Antônia”[ii], tenha sido barrado pelos anos de ditadura, pelos anos Temer/Fascismo (não menciono o nome do presidente miliciano) e o atraso imposto.

 

Tenho um leitor atento dos meus textos, antes de publicá-los. Quando não falo de mim nos textos, ele considera os textos mais maduros. É um arquiteto, formado pela USP e fotógrafo (esse título eu lhe concedi).

 

Tenho uma leitora atenta dos meus textos, antes de publicá-los, formada em Letras na Universidade de Lisboa, que diz que meus textos provocam-lhe sensações físicas e que essa visceralidade ou crueza dos meus textos é que os fazem bons, quanto mais falo das minhas experiências, sem filtros, mais ela gosta dos textos. Segundo ela, esses textos deveriam ser conhecidos por muitos, ela os acha terapêuticos.


Talvez, os dois argumentos sejam válidos. O fato é que quem escreve porque é escritor e não porque quer impressionar, escreve o que o que a escrita quer escrever. 

 

Meu argumento, embora eu goste de debater, para o meu primeiro “crítico” é simples: alguma coisa que eu escreva não fala de mim?

 

O personagem Jesse, no segundo filme da trilogia, “Before Sunset”[iii], escreve um livro autobiográfico, e numa conversa literária em Paris, ao ser questionado sobre se o livro era autobiográfico ele responde: “O que não é autobiográfico? Vemos o mundo pela nossa fechadura”. 

 

Se eu vou assistir o filme baseado no livro de Milton Hatoum e ele me remete diretamente aos diálogos que eu tive com a Mariana e o texto é de minha autoria, o texto vai ser sobre minha experiência ao ver o filme. Minha experiência com o filme é lembrar da Mariana, então ela vai estar no meu texto[iv]. Não há porque ser asséptica e esconder minha humanidade. A vida é enlameada mesmo, meu texto, também.

 

Minha tese para me formar em terapeuta de casal e família é sobre isso: pra falarmos de nós, falamos de outros e da sociedade na qual vivemos e pra falar da sociedade na qual vivemos e dos outros, falamos de nós, até porque não temos como sumirmos do que fazemos. O titulo é “A autobiografia como jornada terapêutica – uma leitura sob a ótica da Terapia Narrativa” (PUC/SP, 2012). Usei livros, filmes, exposição. Tudo autobiográfico.

 

Em 2018, eu mesma produzi uma obra autobiográfica, “Baralho de palavras”, uma experiência na qual escrevi uma palavra por dia e montei esse Baralho. No mesmo ano, como representante da Associação Brasileira de Psicoterapia (ABRAP), ministrei um Workshop no Congresso Nacional “Psicologia: Ciência e Profissão”. O título do meu trabalho: “Autobiografar-se no contato lúdico com a palavra”. Esse trabalho se desdobrou nas “Oficinas Autobiográficas” que ministro onde me convidam, com a Universidade Portucalense e a Academia Mundo das Artes, filiada a Universidade Lusófona, ambas em Portugal. Isto para dizer que não só me formei pessoalmente por autobiografias, mas contribuí produzindo conhecimento a respeito do tema e produzindo minha obra autobiográfica, que serve para outras pessoas se autobiografarem, é um instrumento de autoconhecimento.

 

A noção de que haveria a possibilidade de sumirmos do que fazemos, sermos neutros, vem da ideia de neutralidade herdada das ciências naturais que não se aplica a nada que é humano. Não podemos ser neutros. Seria um fingimento, uma forma de desumanização, de tentarmos ser o que não somos, essencialmente, como humanos.

 

O existir humano, sempre incompleto, contextualizado, parte decidido por nós pelo que nos é apresentado como possibilidade realizável, parte imposto pelas

circunstâncias e em constante transformação, não é um laboratório de experimentos com variáveis controláveis.

 

As teorias que criamos, incessantemente, sobre nós, sobre o mundo, sobre a forma pelas quais podemos acessar o ser humano e a sociedade tentam dar conta do que nos escapa o tempo tempo. Parte do sofrimento humano consiste em ser finito, parte consiste em querer controlar o incontrolável, embora o sofrimento e a alegria sejam inúmeros, em adição.

 

Quero a coragem de Gattai, de Paiva, de Beauvoir, de Armstrong, de Talese e de Martha Nowill, que acabei de ler. Ela escreveu um livro visceral (“Coisas importantes também serão esquecidas”), porque não tentou em nenhum momento agradar aos identitários e aos puristas da Literatura. Sem medo de parecer isso ou aquilo. 

 

O livro é tão bom porque ela se permite ser o desenrolar historial que é (todo ser humano é um desenrolar historial e todos nós temos o direito de ir sendo como nos é possível e, em certa medida, desejado, claro, desde que isso não mate ninguém). O ser humano é sendo, porque está em curso e finda, não se sabe quando, sem acabar.

 

Sob risco de me tornar repetitiva, por repetir em diversos textos a mesma premissa, mas insisto, história não é passado, é um desenrolar que une as três ekstasis de tempo, o sido (que como fato passa, mas como significado e ressignificado permanece), o sendo (onde as três ekstasis se unem, estamos sendo indo à frente, nos projetando nas possibilidade de ser, nos vendo como mortais lá na frente, retomando quem fomos) e o vir-a-ser (que é a primazia do ser humano, porque somos um constante vir-a-se, nunca acabado).[v]

 

Minha supervisora, Bilê Tatit Sapienza, que tem uma enorme contribuição para a clínica daseinsanalísta, com seus livros, insistia para que eu escrevesse, porque, segundo ela,  eu tinha muito a dizer e “mutatis mutandis, você seria como o avarento se não der ao mundo seus escritos”, me disse uma vez. Eu argumentava que não era excelente na forma. Ela dizia, “a forma se corrige, a falta de conteúdo não há possibilidade de resolver”.

 

Escrever é sobre precisar compartilhar e não há nada mais profundo do que compartilhar a própria experiência, a única coisa que temos.

 

Academicamente, pesquisando sob as premissas da Fenomenologia Existencial-Hermenêutica, cujo ponto de partida, tanto na clínica quanto na pesquisa é perguntar: Como esse fenômeno é possível, o que sustenta sua aparição?, escrevi no meu mais recente trabalho acadêmico o trecho com o qual termino esse texto, que pode ser encontrado na página 5:

 

“A pesquisa se dá porque algo no mundo fático do pesquisador lhe apareceu velado, incompreensível. A razão da investigação é o desvelamento do fenômeno. O pesquisador é sempre aquele ser afetado pelo fenômeno que busca pesquisar, para desvelá-lo[vi]. Buscar o que sustenta e constitui o fenômeno é buscar um desvelamento possível por aquele determinado pesquisador que, ao reconstruir o fenômeno, o fará interpretando-o, a partir do que o próprio fenômeno, no processo de ser desvelado, mostra. Sempre sabendo que o fenômeno não se mostra por inteiro, por isso, o desvelamento é situado e autoral, feito contextualizado, temporalmente e espacialmente, por um determinado pesquisador1[vii].”[viii]

 

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[v] Essas e todas as noções e definições de ser humano apresentadas no texto tem como base o livro “Ser e Tempo” de Martin Heidegger.

[vi] Não é aquele ser neutro. Por isso, ele terá que explicitar suas razões e sua “posição prévia, visão prévia, horizonte prévio”, que é de onde sempre partimos, conforme descrito no parágrafo 23 de “Ser e Tempo” (Heidegger, 2007), seu ponto de partida, a respeito de seu tema, do fenômeno investigado.

[vii] Podendo haver congruência com outras pesquisas ou outras abordagens metodológicas, ao ser a pesquisa publicizada para a comunidade acadêmica.

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