Desentendimento por Política, é por valores*

Sou da Fenomenologia-Existencial. Uma corrente filosófica com muitas vertentes. A fenomenologia de Martin Heidegger, que desenvolveu sua “Ontologia Fundamental” e descreveu como ninguém a condição o humana, é a que pratico: Fenomenologia-Existencial Hermenêutica.


A obra de Heidegger foi usada como referencial no século XX por dois psiquiatras suíços , Boss e Binswanger, para desenvolverem uma clínica fenomenológica. E até hoje, nós, que seguimos essa linha, procuramos a prática dessa clínica, desenvolvendo pesquisas e estudos na abordagem.


Depois surgiu a Psicologia, uma disciplina que nasce do encontro da Filosofia e da Biologia e, por isso, há linhas com modelo mais médico e outras com modelo mais filosófico.


Embora alguns achem que os cinco anos da graduação de Psicologia e mais as diversas pós-graduações que fazemos sejam inúteis eu não concordo que um psiquiatra possa ser também psicoterapeuta e digo a razão. Terapeuta não pode medicar.  


E o que a Filosofia faz, de modo geral? Pergunta. Através da pergunta e da pesquisa, do rigor do método (que deve respeitar as caracteristicas humanas)**, podemos desenvolver o pensamento crítico.


E o que a Fenomenologia-Existencial Hermenêutica faz? Ela busca encontrar a “estrutura de sentido”, sob que condições algo é possível.


Para continuarmos, é preciso esclarecer: a Psicoterapia nos ajudar a conhecer nossos valores e preconceitos, no exercício da cidadania (Política) colocamos esses valores e preconceitos em atos, em escolhas.


Depois desse preambulo de historiadora, prolixo para um texto jornalístico, mas que situa quem quer entender o que vou dizer, pergunto: O que sustenta o desentendimento “por política”, como ele foi possível, no Brasil, a partir de 2016?


E explico porque me desentendi com amigos por valores e não por politica.

Quais os valores de pessoas que aceitam que a constitucionalidade do país seja quebrada e seja instaurado um governo ilegítimo, a partir de um golpe de Estado, a partir da vontade de um candidato que perdeu as eleições e não quis esperar as próximas? 


Quais os valores de pessoas que aceitam que um juiz desrespeite as leis executando prisões preventivas, conduções coercitivas ilegais?


Quais valores de pessoas que aceitam que um deputado, no microfone do Congresso Nacional, fechado pela Ditadura Militar, exalte o maior torturador da história do país, zombando das atrocidades sofridas por uma estudante brasileira que lutou contra o Regime Militar e que, naquele momento, era presidenta do país?


Quais valores de pessoas que aceitam que um ser humano seja preso, num processo com diversas irregularidades, de acordo com os maiores juristas do mundo para que não seja  candidato nas eleições?



Quais os valores de pessoas que aceitam que dois seres humanos decentes (candidato a presidente e a vice-presidenta) tenham suas reputações injustamente difamadas numa eleição e que essa prática, disseminada em massa, seja paga com dinheiro ilegal?


Quais valores de pessoas que aceitam que um juiz depois de prender, sem provas dos crimes dos quais o acusava, o principal candidato à  presidência do país, aceita ser ministro do governo eleito, através de difamação, paga com dinheiro ilegal, defendendo tortura, eliminação de opositores e armamento da população?  


Quais valores de pessoas que aceitam que um juiz, funcionário público portanto, aja em benefício próprio, em colaboração irregular com órgãos federais de outro país, que comprovadamente (por documentos fornecidos pelo próprio país) colaborou no Golpe de Estado ocorrido em 1964?


Quais valores das pessoas que numa crise sanitária defendem um presidente que já em março de 2020 saia às ruas colocando a vida de seus apoiadores e de toda a população em risco, porque por ser presidente um exemplo? 


A briga, meus caros amigos e ex-amigos não foi por Política, foi por decência, civilidade, honestidade, pela república, pela democracia, pela credibilidade e lisura do Judiciário, pelo SUS, que vem sendo desmantelado, depois de vir sendo construído por 30 anos, foi pela Industria Cinematográfica Brasileira, que emprega milhares de pessoas e vem sendo destruída, pela Ciência e Tecnologia Brasileiras que vem sendo perseguidas. Pelas artes, pela vida das crianças negras mortas por bala, enquanto brincam na porta de suas casas, pelos indígenas, primeiros povos a ocuparem essa região do Planeta Terra, que vem sendo mortos. Pelo meio-ambiente, do qual depende nossa vida, apesar de acharmos que somos superiores, sem sermos, na cadeia natural.


A briga é por civilidade, por humanidade, por responsabilidade social, por senso de comunidade.


A Política é isso: quais são seus valores e de qual lado você está?


Por isso digo que para votar é necessário conhecimento histórico e autoconhecimento. E para ambos é necessária a humildade de aprender.


Eu estou do lado da República, da Democracia, da Constitucionalidade, da Lei, da vida, da dignidade humana, que exige casa, comida, água encanada, estudo, segurança, trabalho e o direito de sonhar, projetar. 


Não preciso estar próxima de pessoas com as quais não concordo, mas não posso querer eliminá-las! Nem por Covid19, nem por fome, nem por bala. A política da morte não é acaso, é uma prática, deliberada. É Necropolítica. E quem fecha os olhos ou apoia, é cúmplice, é responsável.


Na obra “Necropolítica”,  Achille Mbembe descreve como se dá a desumanização do outro, antes de eliminá-lo. E nós avisamos! Ele avisou, o candidato. Ninguém votou enganado. 


Quando uma pessoa lhe disser: “não faz diferença qual político está no poder ou será eleito” , como eu ouvi, tenha a certeza que não faz diferença pra ela. E, ela está demonstrando que só pensa nela e nos seus.


E esse lado é o lado da quebra da constitucionalidade, do Judiciário que não respeita Lei, da força bruta, do lucro que não se importa em escravizar ou semi-escravizar, do colonizado que admira o desenvolvimento dos outros países, mas aceita que o patrimônio público brasileiro seja vendido, que nossos cientistas e artistas sejam desvalorizados.


É o lado de quem é descendente de imigrantes, mas cala diante do racismo, de quem oferece a melhor escola pros seus filhos, mas aceita que outras crianças morram baleadas, é o lado de quem aceita votar em quem defende milícias, é o lado de quem quer conforto e viagens, mas aceita que todos os direitos do trabalhador sejam retirados e fala da ditadura em Cuba, mas aceita a ditadura do Capital.


Na Política você mostra quais são os valores que pautam suas escolhas.


O entendimento ou o desentendimento é por valores.


Fica evidente se estamos falando de pessoas que pregam a filantropia, mas não aceitam a Justiça Social, até porque a Justiça Social acabaria com filantropia, que proporciona tanta visibilidade para quem está no lugar de quem doa e mantém na obscuridade o que é obrigado a viver de doações.


Triste desentendimento, sim, porque é triste descobrir que pessoas queridas aceitam a dor do outro. Sem problemas, enquanto vivem no conforto.


Achava-se que com a pandemia todos entenderiam a importância de um Estado forte e para todos. 


Achava-se.


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*Este texto foi escrito em 2021. A minha perplexidade foi tanta que fui para Portugal e criei a seguinte pesquisa, pela Universidade de Lisboa. Pode ser encontrada nesse link:


https://repositorio.ulisboa.pt/handle/10400.5/98745


**No capítulo sobre o Método da pesquisa, no link acima, você encontra maiores esclarecimentos a respeito do “rigor do método”.


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