Quero ouvir os homens - O caso Anielle Franco.
No dia 5 de setembro, a primeira notícia que li foi sobre a morte por queimadura de uma atleta queniana. Ela chegou a ser hospitalizada, mas não resistiu. O marido ateou fogo no corpo da atleta.
No dia 6 de setembro, a primeira notícia que li foi sobre uma francesa de mais de 70 anos, que foi estuprada por 10 anos, por 72 homens, levados à sua casa pelo seu marido, com quem vive há 50 anos, que a dopava para que fosse violada, assistia e filmava a violência.
No mesmo dia 6 de setembro, por volta de 15:30, vi um vídeo sobre a denúncia de que um ministro havia colocado a mão entre as pernas de uma ministra, durante uma reunião ministerial. Entre outras denúncias. Ministro dos Direitos Humanos.
Neste momento, tenho casos no consultório, no Brasil e em Portugal, de mulheres abusadas, ou por seus parceiros ou no ambiente de trabalho. Emocionalmente, sexualmente.
Recebi uma paciente altamente escolarizada e com dois cargos relevantes socialmente que procurou a terapia por ansiedade. Ela mal respirava no início. O problema respiratório não passava.
Atendo online, modalidade na qual não há nenhum “acessório”, como nossa sala de espera, nossa água, nosso café, nossos móveis, o quadro que há na parede do consultório, é apenas o encontro terapêutico. O que é excelente para uma psicoterapia.
À medida que ela foi me contando os acontecimentos nos quais o quadro de ansiedade surgiu, via-se claramente o assédio moral do homem que a chefiava num dos cargos. Um homem preto. Como ela é uma mulher progressista, não suspeitou do assédio, por ele ser progressista e preto. Ele estava “imune” a este tipo de suspeita. Apenas nas sessões de terapia, ela foi percebendo o que havia se passado e “se lembrou” que houveram, também, mensagens de cunho sexual. O problema respiratório sumiu.
Uma outra paciente passou 20 anos num casamento no qual, aos olhos de seu abusador, digo, marido, ela fazia tudo errado. De sexo à educacao dos filhos.
Ela, sem se dar conta, caso não fosse o processo terapêutico e alguns comentários de familiares, sente pena dele e deseja salvá-lo, mesmo tendo conseguido sair do casamento.
O abuso ainda permanece, nas ligações para resolverem trâmites da separação.
Ela tem medo dele. Ela duvida de si. E em Portugal não há delegacia da mulher.
No início do processo terapêutico, ela mandou-me um áudio, com uma das discussões entre ele e os filhos.
Ela sabia o que estava vendo e ouvindo. Mas como acreditar em si mesma? Ela precisava que eu dissesse que ouvi o mesmo que ela e, principalmente, que aquilo era o que ela achava que era, um pai abusando emocionalmente dos filhos, como fazia com a esposa.
Com outra paciente foi preciso desenvolver um trabalho para que ela soubesse que um dos filhos não era o estupro do ex marido do qual ele era fruto.
São trabalhos bonitos e sou grata por poder fazê-los, mas essas experiências são evitáveis! E devemos lutar por isso, para evitá-las. Não é uma luta feminina, é humana.
Os homens também são abusados emocionalmente. São manipulados por mulheres que os usam para diversas finalidades. Os homens também são estuprados por outros homens. Ninguém nega esses fatos. E não se pode negar a experiência de uma mulher, durante toda a vida, num mundo misógino, machista e que aceita a cultura do estupro. É uma experiência inenarrável, altamente incômoda e inaceitável como algo natural. É cultural, pode e deve ser mudada.
Acredito que os homens são, também, vítimas do machismo. Eles “precisam” olhar pras mulheres demonstrando disponibilidade e desejo, eles “precisam” paquerar, eles “precisam” trair, eles não podem “falhar” e assim por diante.
A experiência feminina de não poder andar na rua em paz, durante uma vida toda não pode ser minimizada. Seus impactos emocionais não podem ser relativizados.
Registro também meu lamento por teorias psicológicas, muito difundidas e tidas como verdades, embora teorias, que dizem que somos “naturalmente” violentos. Discordo. A violência e o pacifismo são possibilidades humanas. Podem ser aprendidas ou desaprendidas.
A violência pode ser sutil. O “tratamento de silêncio”, por exemplo, que consiste em deixar a pessoa sem resposta, por escrito ou presencialmente, é violência. Pedir desculpas dizendo que a outra está errada é violência, é “gaslighting”.
Há várias formas de feminismo. O “como” de lutas legítimas pode ser diferente e não é diferente no movimento de busca de espaço social para as mulhres
No âmbito do feminismo que conheci e sigo não é aceitável, como mulher, usar o corpo ou a aparência para atingir objetivos, sejam quais forem. Seria seguir o enredo da objetificação feminina.
Na contemporaneidade, há mulheres que se reivindicam feministas e fazem questão de exporem o corpo e se apresentarem sexualizadas, seja em que profissão for.
Esse debate é amplo e com muitos caminhos por onde podemos seguir. Porque muitas vezes luta-se de acordo com as características do ambiente no qual estamos imersos, imersas, no caso. E, às vezes, sem que percebamos.
Era comum na década de 80 ouvirmos feministas dizerem que as mulheres deveria pagar um prostituto para fazerem sexo aos 15 anos. O que era isso? O machismo ao contrário. Com outras manifestações, essa inversão ainda é possível de ser observada na sociedade.
A linguagem que se usa hoje, de “poder”, de “mulheres poderosas” tem a ver com uma disputa, com um “quem manda mais?”, “quem controla?”, “quem domina?”.
É, ao meu ver, a inversão do que se quer superar. Entra-se não numa superação coletiva, mas num combate de dois lados opostos, antagônicos, em disputa.
Como construir relacionamentos afetivos verdadeiramente íntimos emocionalmente e que promovam amadurecimento mútuo entre duas pessoas que vêm de grupos em disputa social, mesmo que velada? Passa a ser um trabalho intenso de cada casal, sem respaldo social. Claro que cada casal faz e refaz seu contrato particular, mas me refiro a uma sociedade altamente hostil para esse tipo de parceria entre homens e mulheres, especialmente. Casais heteroafetivos.
Outro dia, num programa de TV, ouvi uma mulher dizer que os homens já mandaram demais e que agora não têm que participar, têm que ouvir. Essa foi a resposta fornecida, diante da pergunta genuína de um homem ali presente sobre o que os homens poderiam fazer hoje em contribuição ao substituição do machismo, da misoginia, da cultura do estupro por um mundo mais respirável para todos.
Quero ver os homens participarem, quero vê-los falarem! Todos, como muitos, justiça seja feita, já o fazem. Digam: nos comprometemos a nos desconstruirmos como machistas, a evitarmos relações co-dependentes nas quais o controle mútuo predomina e impede a intimidade real, relações nas quais se é poupado de uma diálogo franco, que permite vulnerabilidades mútuas, humaniza, favorece o amadurecimento e a intimidade, deixamos de preferir a co-dependência que evita intimidade, porque se é útil de alguma forma a outra ou ao outro. Queremos aprender a ter intimidade emocional real com nossas parceiras e familiares do sexo ou genero feminino*. Queremos amadurecer!
Falem!
O amadurecimento deve ser da sociedade. Com a participação de todos. Amadurecimento coletivo.
A luta não é das mulheres, que também devem se comprometer a não serem machistas, a não aceitarem os machismos, a luta é de todos nós. É uma luta para que a sociedade mesma amadureça e abandone o teatro de horrores que possibilita que um ministro dos Direitos Humanos, num governo comprometido com avanços sociais e humanitários, seja acusado de abusar sexualmente de uma ministra que se senta ao seu lado numa reunião de trabalho e, em caso de confirmação da denúncia, se veja reduzida a um corpo objetificado.
Quando Simone De Beauvoir disse que não se nasce mulher, torna-se mulher, ela estava se baseando na ideia de Heidegger, descrita em “Ser e Tempo”, de que a essência humana é seu existir, o desenrolar do ser humano como história em aberto que somos, até findar. Nascemos e vivemos inconclusos. Há possibilidade de nos tornarmos homens, mulheres ou abusares passivos ou agressivos. São possibilidades humanas. É preciso decidir e assumir compromissos. Assim como o envelhecimento é obrigatório e a maturidade é um trabalho opcional, ser homem também é opcional. É possível. Aos que assim o decidam ser. É uma questão coletiva e individual, como tudo que se refere ao ser humano.
*Nao igualo sexo e gênero. Para mim, são coisas distintas. Uma mulher trans certamente passou inúmeros desafios antes de ser tornar mulher que, no meu entendimento, são diferentes dos desafios de uma mulher que nasceu do sexo feminino.
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