Ensaio sobre a memória e a identidade - Cristiane Jatene

        No filme "Eternamente Alice" (Still Alice) a personagem principal, interpretada por Julianne Moore, vítima de Alzheimer precoce, aos 50 anos, no auge de sua vida profissional, por um problema genético, nos mostra como se forma, o que chamamos de “nossa identidade” e como é  perdê-la. Num discurso, em uma associação para doentes como ela, explica que sem as próprias memórias não pode ser ela mesma. E o que seriam nossas memórias? 

Numa resposta rápida e certeira, diria que é o que lembramos do que ainda somos e do que não somos mais. É lembrarmos, também, do que pensamos ser um dia, mas nunca fomos, lembrarmos do que queremos ser e do que temos sido. A memória tem a ver com nossa relação conosco. Com a significação e ressignificação que fazemos do do nosso arco existencial. A ressignificação do passado é sempre dada pelo que viemos a ser, pelo futuro. Podemos dizer que se não temos mais o que ressignificar, como uma folha em branco, é difícil criar o nosso vir-a-ser.


      Nossas memórias são a lembrança de nossa história passada, o sido, aquilo que já não é mais e nunca mais voltará a ser. O que escolhemos e o que deixamos de escolher vai formando a história aberta que somos, até findarmos. O sido não é mais, no  entanto, ele nos posiciona sobre nossa identidade, até o ponto do percurso em que estamos. Sabermos quem não somos mais também compõe nossa identidade.


        Essa visão de ser humano, como sendo o desenrolar de seu existir, tendo a própria existência em aberto como sua essência, como o que compõe e forma o si mesmo, e essa ideia de que precisamos saber o que vivemos para saber quem estamos sendo rumo ao porvir, é uma ideia que difere da visão do humano das doutrinas religiosas, por exemplo. No geral, as religiões partem do pressuposto que nascemos com uma essência espiritual e a encarnamos num corpo transitório. Ou melhor, nós seríamos essa essência e o corpo o invólucro temporário dessa essência.


       Há as concepções teóricas que apontam para a direção que diz que nossa essência se forma na infância ou que temos um caráter, que seria, de alguma forma, permanente. 


Decorrente da visão que nossa essência se forma na infância, nossas relações repetiriam as relações da infância.

         

   Temos, também, a visão de que aprendemos um determinado repertório de crenças e comportamentos e que este poderia se transformar com aprendizados novos. 


      Outra visão diz que nossa herança familiar em termos de desenrolar da vida poderia ter o poder de fazer com que repitamos histórias que não conhecemos ou, ainda, que poderíamos nos contrapor às histórias conhecidas, mas tendo-as ainda como forte referência.


     Nesses casos todos, nossa autoria seria um tanto  limitada. Nosso esforço, se quiséssemos, seria no sentido de buscarmos a nossa originalidade, diante da primazia de nossas infâncias ou da potência das sagas de nossas famílias (começadas sabe-se lá quando), ou diante das nossas crenças e repertório comportamental aprendidos no início de nossos percursos de vida. 


Essas visões consideram pouco ou nada o mundo geopolítico cultural no qual nosso existir se desenrola.


       Ter a memória como fundamental para sabermos quem somos, deixa claro que quem somos se dá pela nossa história, pelo desenrolar da nossa vida e não pelo nosso passado. E por que? Porque História não é somente o passado. História é o desenrolar, que engloba passado, presente e futuro, por isso somos no gerúndio, somos sendo, não somos o sido, nem o provir, embora sendo somos um constante vir-a-ser. Os três juntos (sido, sendo, vir-a-ser), no acontecer que se mantém como uma história única, que vem transcorrendo e continuará transcorrendo, enquanto estivermos vivos. 


Cada transcurso historial é original, embora possa conter elementos de repetições e da falta de originalidade, citadas acima. Nesse sentido, de sermos uma história original que se desenrola surpreendentemente, enquanto vivos estivermos, o que tem primazia em nossa vida é o futuro. 


Eu me lembro de uma pessoa próxima que viveu uma situação surpreendente aos 90 anos. Ela me dizia: "Nunca pensei que aos 90 anos viveria uma situação como esta, não achei que teria novidades". Como ela ainda estava viva, a história continua a se desenrolar.



     No entanto, caso o passado não possa ser lembrado, revisitado, reavaliado, ressignificado (quantas vezes forem necessárias e sempre de acordo com que o que aconteceu depois dele) perdemos parte de nós. Da mesma forma perdemos parte de quem somos ao perdemos por morte pessoas que co-fundaram nossa identidade. Sim, pois se eu sou eu, filho de fulano, amigo de cicrano e esses dois morreram, não existem mais para o mundo, quem sou eu?

 

E quando há uma separação? De uma instituição, empresa ou pessoa. Quem sou eu se costumava ser o estudante de tal Universidade e agora sou um desempregado? Quem sou eu se costumava ser funcionário de determinada empresa ou ter um cargo público e agora sou um aposentado? Quem sou eu se costumava ser marido de Maria e agora Maria é namorada de outro. Indo por essa via, podemos perceber o óbvio. Nossa identidade está sempre em transformação e é sempre co-fundada, co-escrita por nossas relações. 


      Podemos confundir transformação com mudança, já que transformação engloba sempre, e necessariamente, mudança. No entanto,  transformações englobam permanência. Algo que se transforma permanece algo, caso contrário não poderia ter se transformado. Um relacionamento que acabou, um grupo de amigos que estudou em determinada escola e se dissolveu, uma casa demolida são exemplos de coisas que se transformaram ao deixarem de existir. No entanto, permanecerão como um ex relacionamento, um ex grupo, uma casa que existia naquele local. Fizeram parte de momentos ou fases da história das vidas, da instituição, da cidade. Mas não existem mais. 


No caso das pessoas, das histórias que somos, a diferença é um pouco mais sútil. Não existimos mais como as pessoas que fomos, somos outras, mas, ainda assim, somos a mesma pessoa, sendo outra. E este sendo é o que nos define. Estamos sempre sendo, o que pressupõe a abertura da história para a continuidade da escrita. 


Eu me lembro de uma mostra muito interessante sobre o cineasta Frederico Fellini, exibida em São Paulo, em 2012. Era uma mostra muito rica, com desenhos, fotos e textos. Buscava relatar o processo de criação de Fellini. Na sala final, um vídeo no qual era exibida a cena famosa de Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg em  "La dolce vita". Ela, linda, maravilhosa, sedutora, já dentro da água, chamando Marcelo. Uma cena clássica da história do cinema e que tornou a atriz famosa. Num outro vídeo eram exibidas cenas da atriz idosa. A imagem, muito humana e real, comparada ao outro vídeo, parecia uma caricatura, inclusive pelo fato da atriz se expor sem pudor. Foi uma genialidade proposital da exposição. Anita era ela mesma, mas não era mais aquela Anita anterior. Ela havia se transformado, mas somente como história ela poderia reconhecer-se. E nós, os espectadores, só poderíamos reconhecer aquela pessoa, aquela vida através do conhecimento daquele fio, chamado história, chamado identidade, que veio até o momento da vida daquela senhora idosa, de cabelo longo, gorda, que, por fim, parecia uma caricatura, mas não era. Era aquela mulher que não é mais, era aquela mulher em outra fase da história que é, como todos nós, Anita é um fio historial.


    Nesse ponto, me lembro de um belo artigo de Marcelo Gleiser publicado na Folha, em 2015, a respeito do artigo de Oliver Sacks contando sua vida (para falar de sua morte iminente) e de como Gleiser interpreta a vida de médico de Oliver em relação a seus pacientes. Ele diz que por sermos história precisamos de ouvinte, senão seria o esquecimento. E que somente algumas pessoas especiais são capazes de ouvir certas histórias. 


Creio que o ofício de psicoterapeuta necessite de uma sessão inicial, antes da psicoterapia começar para ambas as partes verem se há  interesse na escuta. É claro que o primeiro encontro comporta intervenções, comporta o falante ouvir-se e, assim, já é terapêutico. Mas, precisamos saber se queremos ouvir e acompanhar aquela história e a história precisa saber se nos quer nossa escuta acompanhadora. 


      Ainda sobre sermos, obviamente, transformação, precisamos lembrar, que à medida que a ciência avança no tratamento e prevenção de doenças, as condições de vida melhoram e, consequentemente, a expectativa de vida  aumenta. Com isso, novas categorias vão surgindo no ciclo vital. Houve um tempo em que as fases eram três: ser criança (a infância), ser adulto (juventude e fase adulta), ser ser velho (a velhice) Por isso, batizou-se de "Terceira idade", o que seria a última etapa da vida. Depois, a fase da adolescência (de 12 a 19 anos, mais ou menos) foi introduzida. Mais adiante, os jovens adultos (de 20 a 40 anos, mais ou menos). Depois idosos (tornou-se pejorativo chamar alguém de velho). A introdução de novas fases não cessa. Agora, há uma nova fase do ciclo vital, que compreende o período dos 60 aos 80 anos. Hoje em dia, esses que seriam idosos recolhidos, em outros tempos, são lúcidos e ativos. Por isso, em algumas sociedades, introduziu-se o termo "quarta idade", que compreenderia dos 80 aos 100 anos, já que aqueles jovens idosos de 60 a 80 anos levam o título de terceira idade.  Paremos por aqui. Esta seria uma longa explanação e por tratar-se de outro assunto, não iremos adiante.


      Voltemos ao fato de que somos história e transformação permanente. Nascemos bebês, viramos crianças, depois adolescentes, jovens, adultos, adulto-idoso, idoso. E, sim, sempre vivemos a fazermos diversos lutos. Luto da infância, da escola, do grupo de amigos solteiros que agora são pais de família e vemos pouco, dos sonhos frustrados, dos sonhos realizados (que pena não podermos sonhar, de novo, nossos mais caros sonhos realizados. Ah, se eu pudesse, por exemplo, querer novamente ser psicóloga e conseguir realizar este que foi, talvez, meu maior sonho). 


     E, então, qual seria o problema de perder a memória ou não ter memória? Lembro de outro filme, mais antigo que "Eternamente Alice", que abordava essa questão: a possibilidade de apagarmos episódios. Lembro de uma reportagem televisiva a respeito do filme. A pergunta, para os transeuntes, era: "Você gostaria de poder apagar trechos da sua vida?". A resposta mais interessante, da qual sempre venho me lembrando, foi de uma moça que disse sorrindo: "Não gostaria, senão eu não poderia aprender com meus erros e iria repeti-los". Se aprender com os erros significa, necessariamente, não voltar a repeti-los e, mesmo, se existem erros, no sentido de podermos evitar fazer coisas das quais possamos nos arrepender no segundo seguinte, isso já seria uma outra reflexão. O que essa moça quis dizer? Sem a memória, ela não seria ela, não se lembraria do que fez e considerou erro, do aprendizado que teve com a situação e que lhe permite buscar novas possibilidades ou novos "erros". "Brilho eterno de uma mente sem lembranças". Com Kate Winslet e Jim Carrey, de  2004, é o filme que aborda esse tipo de tema.


     Já que vivemos uma permanente, inevitável e ininterrupta transformação, insisto, qual seria o problema de perder a memória do que vivemos? Sabemos, inclusive, que a memória é falha, seletiva, que, à medida que vamos vivendo e agregando novas experiências e relações, o vivido pode ter seu significado drasticamente modificado. Há memórias, tempos vividos que perdem toda a força pela força do que viemos a viver depois. Inclusive, um sinal de saúde mental é conseguir se renovar, se recriar junto com as inevitáveis transformações da vida.


Parece que por piores que possam ser as memórias, são nossas, nos fazem existir. São a prova de nossa existência, como o discurso da personagem Alice nos mostra.


        Sem memória, não sabemos de onde viemos, sem saber de onde viemos fica difícil saber para quê e para onde estamos indo. Uma vez, há muitos anos, eu tinha por volta de 17 anos, ouvi um grande ator brasileiro, que havia estudado teatro formalmente, criticar atores que não estudam teatro, dizia que via na atualidade daquele momento, montagens sendo feitas com elementos ou similaridades, de montagens de décadas anteriores. E por que?, ele perguntava. Por ignorância, respondia. Fiquei com essa entrevista guardada nas minhas lembranças, sempre. Antes de escrever qualquer trabalho, sempre precisei me certificar se era algo original meu, mesmo podendo ser embasado por certa linha de pensamento e não por outra. 


        A  história, que somos, começa antes de nascermos. Bem antes, aliás. No encontro dos nossos pais ou antes ainda, em tempos que, talvez, nunca conheceremos. Não somente quando somos gerados ou quando um nome nos é dado. 


     Pensar nessa ideia de que existimos antes de existir, sem uma concepção espiritualista ou religiosa é curioso, pois nos dá a clara medida que nunca seremos capazes de conhecermos o todo de quem somos. E não somente a história de nós é anterior a nós, ela pode durar além de nós. Acredito que sempre dure, mesmo que numa história contada e perpetuada por, talvez, uma simples tradição oral de alguém que não conheceremos. No entanto, perder a memória é perder-se de si, mesmo continuando a co-existir, a ser história compartilhada. Alice não sabe mais quem é, mesmo sua filha continuando a saber que aquela mulher sem memória, de quem cuida, é sua mãe, Alice.


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