Solidão, longevidade, imigrações, animais domésticos.
Avanço da solidão, da longevidade, das imigrações, do número de animais domésticos.
Por Cristiane Jatene
A Espanha criou em 2024 o “Observatório Estatal da Solidão”[1]. Em 2018, a Inglaterra havia criado uma Secretaria da Solidão[2] e no primeiro final de semana da Secretaria o número de buscas ao pronto-socorro hospitalar diminuiu em 13%. A OMS criou, em 2024, uma “comissão para a epidemia da solidão”[3].
A expectativa elevada de vida[4], graças aos avanços da Ciência, hoje negada por projetos políticos negacionistas, em conjunto com o avanço da diminuição das famílias, da mobilidade humana[5] entre países (filhos e outros familiares e amigos que mudam de país ou cidade) são alguns dos fatores que contribuem para o aumento da solidão, na contemporaneidade. Essa realidade clama pela criação de estruturas sólidas de cuidado, pelos Estados-Nação. Devemos correr, antes que os problemas se agravem.
A solidão não é um problema exclusivo dos idosos. A solidão é um problema do nosso tempo e das condições de vida criadas, tempo no qual o trabalho e as inseguranças a respeito do futuro estão em primeiro plano. Sem falarmos da competitividade, de um sistema concentrador de renda e, portanto, desigual, a nível mundial. A ONU discute agora a criação de um imposto mundial de 2% sobre grandes fortunas[6]. Segundo o organismo internacional, 3 mil pessoas detêm 3 bilhões de dólares. Este imposto destinaria 0,14% do rendimento global, podendo erradicar a pobreza, até 2030. O jornalista Ronaldo Lemos, em artigo para a “Revista Brasileira”, menciona uma pesquisa dos EUA que aponta que 22% da geração de “millennials” não tem amigos, contra 9% de gerações anteriores[7]. Esse dado vai ao encontro do que acontece na Espanha, onde um em cada cinco jovens afirma sentir solidão.
Os terapeutas familiares, há tempos, lidamos com famílias cujos jovens não tem interesses em ter amigos, parceiros afetivos-sexuais ou projetos de vida. Muitos ficam no quarto, vivendo no mundo virtual, com interações reais, mas virtuais, sem muito interesse pelo mundo concreto, mesmo que seja levar as interações virtuais para a concretude. Assim como vem acontecendo com vários adultos que não conseguem estar presentes concretamente, sem checar o celular. As relações exigem diálogo e vulnerabilidade para a criação de intimidade emocional e tem ficado comprometidas, seja porque estão distantes emocionalmente ou pela superficialidade. Consequentemente, a formação de laços que gerariam rede de bons afetos e apoio também fica debilitada.
Apenas no Brasil são mais de 13 milhões de pessoas morando sozinhas e mais de 14 milhões de casais sem filhos[8]. No Capitalismo individualista a tendência é que as escolhas sejam vistas como meramente individuais e com causas individuais. Mas, várias pessoas não tem condições financeiras ou não tem rede de apoio para fazer ou adotar filhos. O Centro de Valorização da Vida (CVV) conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS), no último ano, recebeu perto de 3 milhões de ligações[9].
A possibilidade de vida na Terra está acabando. Apenas 17% dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - Agenda 2030, que os países pertencentes à ONU assinaram, foram alcançados até o momento, 2025[10].
Conforme acabei de explicitar na minha pesquisa na Universidade de Lisboa[11], os países que assinaram os ODS, na ONU, que prometem cuidar de evitar o avanço da emergência climática, promover a Paz, a Justiça, a Saúde Mental, são os mesmo países que apoiam um Estado Colonial, aprovam matança, imposição de fome, violações dos corpos humanos e de animais e do Direito Internacional, ou seja, assinam ODS e apoiam a barbárie. Contra “os outros”, em “outros territórios”, como se a Terra não fosse um espaço único de todos nós. A “casa comum”, conforme Leonardo Boff denomina[12].
Todos os riscos que os seres humanos correm pelo avanço da emergência climática ou em guerras (de fato ou pela violência urbana e rural), os animais, tanto de estimação quanto os que estão em seus habitates naturais, correm.
O que vemos é que os animais de estimação há muito tempo fazem parte das famílias. Tanto que nós, terapeutas familiares, já temos símbolos para inserir os animais de estimação nos organogramas familiares. No Brasil, são 160 milhões de animais de estimação[13]. Um número impressionante para uma população de 215 milhões de pessoas.
Não podemos fechar os olhos, no entanto, para o fato de que muitas pessoas tem substituído a interação afetiva e social entre humanos pela relação com animais de estimação. Segundo Aristóteles, “o ser humano é o animal que fala”, é pela fala que fazemos presente o que está ausente como, por exemplo, o futuro que sonhamos para nós ou para humanidade, é pela fala que nos curamos das nossas dores emocionais, e falar não é só vocalização, a escrita e todas as artes são “falas”.
O animal de estimação, embora tenha todos os sentimentos, dores e alegrias, não é uma questão para si mesmo, nesse sentido, é importante frisar que a interação e proximidade, a troca de afeto e lealdade entre humanos e seus animais de estimação não deve substituir as relações humanas, porque embora o avanço do Capitalismo nos faça acreditar que somos átomos separados, e as famílias são núcleos isolados, nós somos seres gregários e comunitários, não à toa os grandes males dos últimos dois séculos são ansiedade, depressão e dependências: de comida, de álcool, de trabalho, de telas. Isso tudo é falta de vida comunitária, de lembrarmos que vivemos numa “Casa Comum”, o Planeta Terra.
Evitar os desconfortos presentes nas relações entre humanos, que exige constante negociação, que nos confronta, além de nos alimentar de bons afetos. Evitar nossas emoções e sentimentos difíceis de lidar, buscando apenas fuga, alívio ou conforto, seja na interação com animais ou com humanos, exclusivamente virtualmente, é evitar a nossa própria humanidade, é uma forma de agressão contra a nossa natureza humana, que precisa da conversa e da troca empática com outros seres humanos, que estão na mesma condição que nós estamos de sermos seres que tem seu existir e suas escolhas como uma questão para si mesmos.
Muitas vezes, ser uma questão para si é uma questão mais incômoda por estarmos delimitados por opções de escolha que nos desagradam. As escolhas sempre são delimitadas e quando nossas opções são as que não gostaríamos, o peso de ser si mesmo é maior. As trocas com os animais e com a natureza, em geral, da qual somos parte, são fundamentais, mas não substituem a troca com outros humanos.
Animais de estimação com donos, ou tutores, como se convencionou denominar, mais gregários serão também animais mais saudáveis.
[2]https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42724200
[8] Cresce nº de casais sem filhos e de brasileiros que moram sozinhos, diz IBGE
[9] RelatorioCVV_4Tri_final.pdf & Em um ano, SUS tem quase 3 milhões de ligações em canal de prevenção ao suicídio | CNN Brasil
[10]Apenas 17% dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável avançaram | ONU News
[11] Repositório da Universidade de Lisboa: Uma análise compreensiva-hermenêutica da resistência social pró-ciência contra a gestão anticiência da pandemia Covid-19 do governo federal do Brasil.
[12] Uma ética da Mãe Terra, nossa Casa Comum – Leonardo Boff
[13] Brasil supera 160 milhões de pets – crescimento é liderado por pequenos animais e gatos – Do Micro Ao Macro – CartaCapital
Cristiane Jatene é mestre em “Sociedade, Risco e Saúde”, pela Universidade de Lisboa, é psicoterapeuta e supervisora no Brasil e em Portugal, é Terapeuta de Casal e Família, pela PUC-SP, Terapeuta Fenomenóloga-Existencial pela Ass. Bras. de Daseinsanalyse. É autora das “Oficinas Autobiográficas com o Baralho de Palavras”.
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