A transversalidade das sustentabilidades - planetária e social - no mundo contemporâneo globalizado por Cristiane Jatene
A transversalidade das sustentabilidades - planetária e social - no
mundo contemporâneo globalizado
Resumo
Este artigo procura apresentar dois temas interligados. O primeiro tema
é a afetação mútua entre a sustentabilidade planetária e a sustentabilidade
social. O segundo tema é a compreensão de que somente os projetos políticos
direcionam ações estatais e governamentais. A seguir, procuramos apresentar
como compreendemos a situação contemporânea em termos de projetos políticos no
mundo globalizado. Ao final, apresentaremos a relevância radical dos pactos
coletivos entre estados-nação e de uma educação cidadã para escolhas políticas
anticolonialistas, baseadas no respeito à sustentabilidade inclusiva e não na
lógica da necropolítica e do negacionismo histórico, climático e em saúde, é
nossa proposta para encaminharmos a solução da insustentabilidade planetária e
social, que experienciamos hoje.
Palavras: Sustentabilidade Planetária, Sustentabilidade Social, Cuidado, Projeto
Político, Contemporaneidade, Mundo Globalizado, Educação, Desigualdades
Sociais, Democracia, Anticolonialismo, Pactos Coletivos, Cidadania.
Introdução
O intuito desse artigo é compreendermos a sustentabilidade planetária
como inexoravelmente ligada à sustentabilidade social e como esses dois temas
são transversais a todos os outros temas que dizem respeito à humanidade no
mundo contemporâneo globalizado. Enquanto houver insustentabilidade planetária
e social, viveremos a crise do cuidado e a ameaça de extinção da vida no
Planeta Terra, ambos os problemas já vigentes e em curso acelerado.
Atentamos para o fato de que sustentabilidades ou insustentabilidades
são escolhidas por decisões políticas, de estado e de governo, baseadas em
projetos políticos, explicitados ou camuflados.
Compreendemos que uma lógica de domínio colonialista, exploratória,
dominatória é insustável, tanto do ponto de vista planetário quanto social.
Assim como é insustentável valorarmos vidas humanas de formas diferentes de uma
maneira hierárquica, baseada na métrica dos opressores. A vida do opressor ou
do etnocêntrico passa a valer mais que a vida daqueles que ele oprime ou
intenciona oprimir. Uma vez que desvalorize vidas humanas, desumanizando-as,
facilita sua opressão e descartabilidade.
No item I, apresentaremos a ligação entre Sustentabilidade Planetária e
Sustentabilidade Social, que exige o cuidado cuidadoso que representam
as ações político-estatais de proteção social e que, quando não acontecem,
geram uma crise de proteção social, que chamaremos de “crise do cuidado”. Nem
indivíduos, nem famílias e comunidades, por mais que ajam em seus ambientes,
podem substituir a ação político-estatal em se tratando de sustentabilidade
planetária e sustentabilidade social. Sem a ação político-estatal, continuaremos
a compartilharmos a crise climática e a crise do cuidado. Não há como conciliar
modos imperialistas-coloniais de ação político-estatal com sustentabilidade
climática e social. Esses sistemas, ao longo de séculos, tem destruído o meio
ambiente e criado enormes contingentes de pessoas sem cidadania. O que nos fez
chegarmos ao ponto que estamos. Ponto próximo ao “ponto de não retorno”, caso
nada seja feito imediatamente.
No item II, falaremos de como cuidar ou negligenciar esses temas é
decisão embasada em projeto político.
No item III, faremos a apresentação dos elementos que sustentam o
complexo panorama político contemporâneo global. Como veremos, mesmo com suas
especificidades locais, há dois modelos de mundo, representados por dois
principais projetos políticos mundiais, na contemporaneidade.
No item IV, propomos caminhos que consideramos incontornáveis para
mantermos o planeta Terra em condições de sustentar a vida e para que se
transforme em “Casa Comum” (Boff, 2020), bem habitada por todos, os pactos
coletivos entre estados-nação e a educação cidadã e eticamente vinculada a
sustentabilidade planetária e a sustentabilidade social.
Esse artigo parte de um dos achados da pesquisa “Uma análise
compreensiva-hermenêutica da resistência social pró ciência contra a gestão
anti-ciência da pandemia Covid-19 do Governo Federal do Brasil”*,o fato de que
o mundo globalizado contemporâneo apresenta-se interligado e insustentável e de
que está dividido, como mencionado, principalmente, em dois projetos políticos.
Partindo desse ponto, resolvemos abordar um tema que nos saltou aos olhos e
que, entretanto, como não faz parte do escopo da referida investigação, seria
tema de uma futura investigação: a Sustentabilidade do mundo contemporâneo.
*Pesquisa desenvolvida no ISCSP – Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas da Universidade de Lisboa.
É esse o tema que pretendemos introduzir nesse artigo, ao considerá-lo
relevante e contributivo tanto para o mundo acadêmico quanto para a
sociedade.
A divisão do mundo entre esse dois projetos políticos mostra que um dos
projetos busca co-construir a sustentabilidade global e outro pretende manter a
insustentabilidade, através da lógica predatória que visa apenas o lucro, mesmo
que represente prejuízos ao planeta e a possibilidade de uma coexistência
saudável para todos os seres vivos.
I - A afetação mútua entre a sustentabilidade planetária e
sustentabilidade social
Falar em sustentabilidade não significa um debate reduzido aos rios,
oceano, campos, significa buscarmos saber como construir um arcabouço social
que sustente, por exemplo, temas próprios da contemporaneidade, como a
longevidade humana e as famílias unipessoais. Falar em proteção social
significa falar em cuidado.
Significa nos perguntarmos, como sociedade, como faremos para que os
avanços científicos em saúde, educação, moradia e locomoção cheguem a todas as
pessoas. Sabermos como evitaremos que o colonialismo contemporâneo e a
indústria bélica-armamentista provoquem guerras e destruições incessantes, gerando
enorme contingente de deslocados, de forma forçada, que se tornam refugiados,
dentre tantas outras questões.
Falar em sustentabilidade significa falar da insustentável desigualdade
social presente no Planeta Terra. Significa dizer que muitos não se vêem como
seres planetários, individualmente, e se sentem com o direito à exploração da
terra e dos outros seres viventes.
Há países, e organizações de países, que se vêem no direito de
continuarem a explorar e anexar territórios alheios e oprimir populações estrangeiras
em seus países e, simultaneamente, fechar fronteiras de seus territórios, para
que essas populações prejudicadas pelas guerras, que eles mesmos provocaram,
possam recomeçar.
A pandemia Covid-19 expôs de forma contundente que o mundo globalizado
no qual vivemos tem nas desigualdades sociais um problema que pede solução
urgente. De acordo com Wilkinson e Pickett (2015) todos os índices sociais
(para classes baixas e altas) apresentam-se piores onde há a presença das
desigualdades, já quem em sociedades desiguais a colaboração social é
prejudicada pela constante desconfiança entre os atores sociais.
Adotamos nesse artigo a denominação sindemia Covid-19, de acordo
com Junior & Santos (2021), pois houve uma intersecção entre pandemia e as
condições materiais e financeiras interferindo em como cada grupo social viveu
a pandemia. Não foi uma crise exclusivamente sanitária, foi também uma crise
social, de sobrevivência, dificuldades materiais e pelas co-morbidades, ou
seja, o atendimento às outras enfermidades também foi prejudicado. A crise da
Covid-19 evidenciou e agravou problemas preexistentes.
Quando falamos em sustentabilidade não estamos nos referindo,
exclusivamente, ao aquecimento climático que caso não seja revertido
significará a extinção da vida no planeta Terra. Como aponta Krenak (2019), a
visão da natureza como “recurso” é um problema para a humanidade. Humanidade
esta que, em sendo também natureza, não só se vê apartada, como vê outros
humanos com “recursos”. Um caso clássico é a escravização e todas as formas de
opressão de humanos por humanos, silenciamento, apagamento, simbólicos ou
literais.
A desumanização do ser humano (Laval, dardot & Berenguer, 2018), na
“Era da Técnica”, como descreve Heidegger (2007), especialmente nas relações
laborais permeadas por aparelhos eletrônicos, metas irreais a serem atingidas
para seres humanos. A falta de direitos suficientes e condições adequadas geram
o distanciamento nas relações comunitárias e sociais. A carência de estruturas
públicas que dêem segurança para todos, durante todo o arco do ciclo vital e de
seus inerentes desafios e transformações, passa a ser uma fonte permanente de
insustentabilidade da saúde mental e das relações de bons afetos, fundamentais
para a vida humana.
Há ainda outros desafios advindos da conduta predatória dos recursos
naturais e do esgarçamento das relações sociais, tendo como prioridade o lucro
ante a vida, utilizando, inclusive, premissas anticientíficas ou
naturalizantes, como se algumas emergências em saúde e climáticas fossem
naturais e contra as quais nada poderia o poder público (Portella &
Oliveira, 2020).
Os desafios são de ordem material e emocional. A segurança material e a
segurança emocional estão inexoravelmente ligadas nos sistemas capitalistas,
porque a vida depende da remuneração laboral ou de se manter o dinheiro que se
tem, sem que o sistema forneça alguma previsibilidade. Mesmo estados de
bem-estar social, em estruturas capitalistas, podem ser ameaçados, como temos
presenciado nos últimos anos.
Sem a proteção de um estado de bem-estar social, a experiência de
imprevisibilidade pode ser constante. A desproteção e o descuido, em fases mais
sensíveis do ciclo vital, como velhice e infância, ou em fases de desemprego ou
adoecimento. A insegurança generalizada ao se fazer presente tem o poder de
afetar a saúde mental e relacional, negativamente.
As questões de saúde mental são, de fato, questões de saúde existencial,
pois englobam a integralidade humana e relacional. No entanto, vem sendo
tratadas, desde o século XIX, primordialmente, no geral, como problemas
unicamente dos indivíduos, como se eles fossem deslocados do contexto em que
vivem e como se o contexto fosse saudável. Sem o cuidado do contexto, o cuidado
ao ser humano, em termos de saúde mental, pode se mostrar precário.
II - Os projetos políticos direcionam ações estatais e governamentais
A pandemia da Covid-19, especialmente na fase aguda, quando não havia
ainda vacina, decorrida no âmbito global e com governos negacionistas,
deixou-nos claro que, embora todos os países e regiões tenham especificidades
locais, há questões basilares que devem ser entendidas no âmbito transnacional.
Dentre essas questões, que são inúmeras, destacamos: Sustentabilidade, Saúde
Pública, Educação para a cidadania.
As desigualdades sociais do mundo globalizado deixam-nos evidente que as
populações mais desfavorecidas são as prioritariamente atingidas quando há
desastres naturais, mas manejáveis científica e politicamente, e não há
proteção estatal.
Os desastres naturais afetam mais ou menos as populações em decorrência
da presença ou ausência de ação política tanto para frear o aquecimento
climático quanto para, preventivamente, construir e manter proteção
social.
Os poderes constituídos, ao negarem proteção à parte da população que,
com menos recursos, precisa mais das políticas públicas, praticam o que Achille
Mbembe caracterizou como Necropolítica (Mbembe, 2018), decidem quem morrerá,
valorando vidas de forma desigual e hierárquica.
Em oposição a uma abordagem responsável em relação ao aquecimento
climático temos os projetos políticos negacionistas, são os fascismos
contemporâneos, presentes em diversos pontos do planeta e interligados.
Negacionistas dos estudos acadêmicos e das evidências científicas, aliados ao
Neoliberalismo, na fase da financeirização do Capitalismo.
O Neoliberalismo combate a presença de investimentos estatais, na
construção e manutenção de estados de bem-estar social fortes, que protejam
suas populações de forma eficiente. Ao contrário, busca privatizar empresas
estatais rentáveis, mesmo de monopólios, como energia, água e gás, para
favorecer a lucratividade do mercado.
A instalação de estados de bem-estar social em sistemas capitalistas com
eleições, relativamente democráticas, estará sempre sujeita a sua desconstrução
ou destruição, uma vez que há projetos políticos contrários ao estado de
bem-estar social, estado esse que como o nome anuncia objetiva a proteção
social da população. Mesmo que essa estrutura de estado social esteja
instaurada, numa estrutura de sistema capitalista, ela pode ser revertida ou
prejudicada, a depender do projeto político que se encontra no governo.
Como salienta De Masi (2022), os sistemas socialistas não foram capazes
de acumularem riqueza e os sistemas capitalistas não foram capazes de
distribuir a enorme riqueza gerada, criando desigualdades insustentáveis, aos
níveis planetário e social.
A pandemia Covid-19 evidenciou que não estamos blindados em termos de
Saúde Pública dentro dos estados-nação. É mister que ações globais em termos de
Saúde Pública sejam planejadas e levadas a cabo. Esse déficit de
planejamento global pode levar a dois caminhos deletérios. Aos gastos
excessivos em saúde por parte dos estados, por falta de promoção e prevenção em
saúde, ou a morte prematura de cidadãos não assistidos.
Não só a contaminação viral pelo “Novo Coronavírus”, causador da
Covid-19, foi global, quanto ficou evidente a ineficiência do pacto criador da
ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Alguns países tinham mais de cinco doses vacinais para cada habitante,
um excesso desnecessário, enquanto outros países, mais pobres, não tinham
vacinas.
São contrárias à Saúde Pública Global, a indiferença em relação às vidas
que não sejam “nacionais”, e a inimizade de determinados projetos políticos
para com a sustentabilidade planetária, da qual depende a continuidade (ou não)
de vida na Terra.
A Democracia exige cidadania. Ao conferir o direito de votar, de
debater, de criar partidos políticos, de reivindicar, entendemos que é necessária
uma educação para a Democracia, a educação cidadã.
A educação precisa ser contemporânea, apresentar a modificação
democrática. A democracia da contemporaneidade e do futuro visa tornar-se
radicalmente inclusiva, sem restrições, sem colonialismos, o que implica que o
Estado Democrático de Direito, de fato, seja republicano e laico.
Não pode haver uma democracia restrita a certos grupos, como era na
Grécia Antiga ou na constituição da democracia estadunidense, como mostram
Zevistky & Ziblatt (2018), ou, por exemplo, como o caso Sueco. Já que na
Suécia, até a década de 1970, não era permitido o voto feminino.
As democracias contemporâneas tem o desafio de tornarem-se democracias
plenas e não democracias relativas, além de rejeitarem a aceitação “democracias
relativas” auto proclamadas “democracias plenas”. Onde há desigualdades sociais
agudas e colonialismos, por exemplo, a democracia não alcançou a plenitude e,
as democracias contemporâneas tem sido ameaçadas.
Sobre as bases dos fascismos contemporâneos, há a interdição do debate
ou há o “debate” competitivo, sem escuta mútua e que não objetiva a pactuação
de consensos e compromissos. Visa encontrar “o vencedor” o que, na prática,
impossibilita os acordos coletivos.
Já as lutas identitárias prejudicam as pactuações coletivas por serem
lutas que se travam, por causas justas, de modo grupal e não coletivo. As
reivindicações são de grupos. É a substituição do Humanismo pelo
Identitarismo.
Temos, portanto, claro que todos esses entraves para a Sustentabilidade
Planetária e para a Sustentabilidade Social serão transpostos com ações
políticas que tenham como valores máximos o aprimoramento das democracias e do
cuidado com a vida planetária, humana e de todos os seres vivos. Sem um estado
social forte que cumpra essa função e sem pactos coletivos globais de melhoria
do mundo para todos, falar em “sustentabilidade”, de qualquer ordem, torna-se
jocoso. Não é um tema que permite recortes pelo fato de que o globo terrestre é
um lugar único para todos e irrecortável.
III – A situação contemporânea em termos de projetos políticos no mundo
globalizado
Vivemos na contemporaneidade o capitalismo financeirizado, vemos a
precarização do trabalho e das relações comunitárias, em função da lógica
neoliberal já descrita. Trabalhadores precarizados, que trabalham sem nenhum
direito, são facilmente convencidos de que são “empreendedores”. Destruindo o
sistema de direitos trabalhistas destrói-se, simultaneamente, o sistema
previdenciário (alimentado pelo sistema trabalhista) e os sindicatos que, como
coletivos, tem seu poder de negociação fortalecido com grandes corporações em
relação ao poder de indivíduos.
A lógica Neoliberal amplamente implementada nas sociedades
contemporâneas, a ser um “modo de vida” (Ferrero, 2021) infiltra-se como
paradigma de conduta em todas as áreas da vida. Ao contrário de buscar apenas a
redução do estado, “semeia nos sujeitos valores, práticas, cálculos e
avaliações específicas da economia a cada uma das esferas vitais.” (Ferrero,
2021, pp. 1). Esta lógica constitui a perversão da função principal do estado,
de proteger a vida dos cidadãos em temas como saúde, educação, moradia,
mobilidade, previdência, trabalho e, ao mesmo tempo, atribui aos indivíduos a
solução de questões estatais que eles não podem resolver individualmente, ou
seja, desonera o estado e onera o cidadão, perpetuando problemas sociais. Por
exemplo, por mais que os indivíduos reciclem seus lixos este tipo de ação
torna-se ínfima para a preservação do meio ambiente, caso não haja ação do poder
público.
Pela lógica neoliberal, os “direitos sociais” devem ser pagos, passam a
ser serviços. Cidadãos passam a ser consumidores, criando a impossibilidade de
plenitude democrática, já que o poder aquisitivo dos cidadãos é diferente. A
estrutura de proteção social, de cuidado, fica ameaçada. Transformar direitos
básicos em serviços pagos é a base neoliberal e, como mostra De Masi (2022), é
negar a felicidade a quem é atingido por essa lógica.
Conforme mencionamos, há uma crescente desumanização do ser humano, como
aponta Laval, Dardot & Berenguer (2018), na tentativa de transformá-lo em
direção ao que são as máquinas, descaracterizando-o. Esse quadro gera pessoas
ocupadas e cansadas para o convívio e compartilhamento afetivo, social e
político.
As inseguranças vitais são de tal ordem e de toda a sorte que o
relaxamento torna-se um luxo (De Masi, 2022). É exigida atenção permanente,
o que é uma impossibilidade da própria constituição humana
De acordo com relatório da Oxfam Brasil, “Os 2.153 bilionários do mundo
têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população
mundial.” (Agência Brasil, 2020). É uma elevadíssima concentração de renda, o que
demonstra uma falência da vida humana como coletividade solidária, que é o que
seria desejado para que nós agíssemos como comunidade responsável pelo
bem-estar do planeta e de cada ser vivo.
Paralelamente e concomitantemente ao crescimento da ideologia neoliberal
que transforma estado, pessoas, relações, tudo, em empresas, há o crescimento
dos fascismos contemporâneos, em suas novas formas de apresentação, como nos
aponta Traverso (2021).
Os novos fascismos apresentam algumas características não tão novas,
como líderes autocráticos, inimigos da imprensa e da transparência no trato da
coisa pública, misoginia, homofobia, racismos (coloco no plural apenas porque
convencionou-se que racismo é apenas contra pretos), corrupção, islamofobia,
etc. Acrescidos de outras características inovadoras, como o uso massivo de
redes sociais e produção de mentiras travestidas de notícias, as fake news
(Da Empoli, 2020; D`Ávila,2020; Applebaun, 2022).
Os fascismos contemporâneos, assim como o Fascismo, tem como base o
discurso de “nós contra eles” (Stanley, 2020), procuram pautar a imprensa e as
redes sociais com disseminação de desinformação, divisão social, impedindo a
convergência para um centro comum, locus dos debates e acordos políticos
(Da Empoli, 2020).
A difamação de adversários (Da Empoli, 2020) transformados em inimigos a
serem combatidos é basal. Este combate se dá, por exemplo, através do uso
político do Poder Judiciário “Lawfare” (Souza,2020; Zanin, Valim & Zanin,
2020,), deposições de governos eleitos por dentro e através das instituições – soft
coup (Levitsky & Ziblatt, 2018; Souza, 2020), que serão
brevemente apresentados no item IV.
Como aponta Arendt (2022), o poder tem como base a legitimidade dos
acordos políticos construídos e, por isso, quanto menos legitimidade, menos
poder e maior a violência. A violência digital, manifestada em ataques
difamatórios baseados em mentiras, entre outras práticas, não só é uma
modalidade de violência contemporânea, que pode ser extrapolada para o plano
concreto, como é uma forma de negar a Política, como construto de bases
sólidas, legítimas, de poder, co-criada a partir da pluralidade que caracteriza
a condição humana (Arendt, 2010)
Ratificamos a importância de termos no horizonte da compreensão da
insustentabilidade do mundo contemporâneo e da busca, hoje, de um futuro
sustentável, que o Neoliberalismo difunde e busca aprofundar o individualismo
(de pessoas, famílias, grupos sociais), estimulando resoluções atomizadas para
questões comuns, coletivas, que devem ser solucionadas comunitariamente em
parceria com o estado. Transforma responsabilidades estatais e sociais em
responsabilidades de indivíduos e famílias, esgarçando a coletividade na qual
vivemos, implodindo a lógica de comunidade planetária, já que o que essa lógica
afirma é a competitividade e não a colaboratividade.
O fascismo contemporâneo nega a ciência, conquistas ainda em fase de
implementação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, implodindo-a, por
exemplo, ao criar prisão de refugiados no mar, como fez a Inglaterra, em 2023,
conforme amplamente noticiado pela imprensa mundial. Ao criar, há dezesseis
anos, uma prisão a céu aberto em Gaza, com mais de 2 milhões de pessoas, além
das prisões fechadas, onde encontram-se crianças, que não tem acusação nem
processo, num estado colonialista por povoamento (Nasser, 2021), de apartheid (Sahd,
2022), em pleno século XXI, criado, com base e desde seu inicio com o objetivo
de executar uma limpeza étnica contra os povos originários da Palestina
(Pappé,2012), gerando mais de 6 milhões de exilados que, pela “Lei do retorno”
do estado colonial, não podem retornar à sua terra natal, ao mesmo tempo que
qualquer judeu, nascido em qualquer parte do mundo, poder ter cidadania do
estado ocupante.
O colonialismo e os fascismos contemporâneos ou a conjunção de ambos, de
acordo com as premissas de Arendt (2022) são formas de violência em
oposição à possibilidade da construção de poder, necessariamente
legitimado pela concordância das bases populacionais.
Neoliberalismo e Fascismo, desde o início ambos estão lado a lado, na
experiência do Chile de Pinochet (Anderson, 2012) e nas premissas que o
Neoliberalismo considera apropriadas (De Mais, 2022).
O Neoliberalismo é a Economia sem consideração do social. Desemprego e
autoritarismo são vistos pela doutrina neoliberal como recomendáveis (Anderson,
2012; De Masi, 2022).
Os fascismos contemporâneos se mostram reacionários à principal
característica das democracias contemporâneas, serem inclusivas e promoverem a
igualdade entre todos os cidadãos, nativos ou estrangeiros. Ao reagir contra a
inclusão democrática, prega a volta a passados míticos, segregacionistas, a
pretender que a humanidade não tivesse toda ela uma única e mesma origem.
A prática política plena, no contexto dos neofascismos fica
comprometida. Por isso denominamos as práticas fascistas de anti-política.
Não por acaso líderes de extrema-direita contemporâneos apresentam-se como
“outsiders” da Política, demonizando-a, prioritariamente acusando-a de
corrupta. É parte de projetos políticos autoritários deslegitimarem a Política
que, como vimos, de acordo com Arendt (2010; 2022) é a forma capaz de
constituir poder, legitimado.
Um dos perigos dessas práticas consiste justamente em não serem
transparentes, de se camuflarem e se apresentarem como o que não são.
Applebaum (2021) alerta para o despreparo de líderes de extrema-direita,
como Boris Jonhson, ue, segundo a autora, são pessoas que jamais teriam
atingido os postos que tem atingido, se não fossem a massa de pessoas
manipuladas por mentiras, fake news e desinformação.
Por isso, a maioria dos países do mundo globalizado tem buscado criar
legislação para regulação das mídias sociais, já que sem legislação adequada
não pode haver investigação e punição.
Como vimos, de acordo com De Masi (2022), as experiências socialistas
foram capazes de compartilhar, mas não de gerar riqueza, inversamente, o
Capitalismo soube gerar riqueza, mas não soube compartilhá-la de forma
equânime. Para Pikketti (2021), é necessário construirmos um novo Socialismo,
sustentável, antimachistas, multiétinico, ou seja, igualitário e sustentável.
Com base nessas premissas, vemos a insustentabilidade e a crise do
Capitalismo contemporâneo, concentrador de renda em níveis elevados, tanto
entre países, quanto no interior dos estados-nação, tornando inseguros
contingentes enormes da população mundial. Como aponta Picketti (2021), caso
alguns não gostem do nome “Socialismo” por o associarem às experiências
autoritárias que se apropriaram do Socialismo, devemos criar outro nome para
construirmos um sistema sustentável, que é o que necessitamos.
Como dissemos, para minar a credibilidade da Política e da política
partidária, alguns expedientes contemporâneos foram evidenciados, são formas de
“Guerra Híbrida” (Korytko, 2020). São eles “Lawfare” (Zanin, Valim & Zanin,
2020), “Soft Coup” (Levitsky & Ziblatt,2018), disseminação de “fake news”
através das redes sociais, instigando dois afetos: ódio e medo (Da Empoli,
2020; D´Ávila, 2020; Applebaum, 2023).
A prática de “Lawfare” é o uso político do poder judiciário, em
conluio com a imprensa. O Judiciário utiliza da imprensa, que deixa de checar
as informações fornecidas pelo judiciário, publiciza investigações e denúncias
de forma espetacular, sem apresentação de provas ou julgamento concluído
(Zanin, Valim & Zania, 2020; Souza, 2020), fomenta-se, junto à opinião
pública, a condenação anterior ao processo e ao julgamento. A sentença é dada a
priori.
“Soft Coup”, em tradução livre, é “Golpe Suave”, suave porque é um golpe de estado
institucional, com aparência de legalidade, sem tanques e armamentos bélicos.
As armas utilizadas são a corrosão das instituições públicas e o falseamento do
golpe, dando-lhe uma aparência de procedimento republicano-democrático. Em
2016, foi realizado no Brasil um “impeachment”, sem crime de responsabilidade.
O crime de responsabilidade é condição para que haja “impeachment” (Levitsky
& Ziblatt, 2018; Souza, 2020).
“Fake news” são desinformação sobre temas diversos, disseminadas através das redes
sociais, instigando ódio, medo e difamando adversários (Da Empoli, 2020) é base
fundamental dos “novos fascismos” (Applebaum, 2023; Traverso, 2021). Cria-se um
circuito fechado de comunicação e as pessoas que são atraídas passam a
informarem-se apenas através dessas mídias sociais.
Passa a não haver checagem, diálogo, dúvida, debate. Há apenas uma série
de “certezas”, bastante simplificadoras de questões complexas (Applebaum, 2023)
da vida social e das estruturas de estado, até ao nível do ridículo e do
grotesco. As pessoas passam a agir como se o inventado fosse verdadeiro e como
se o verdadeiro fosse inventado, com consequências gravíssimas, como, por
exemplo, deixarem de se vacinar numa pandemia de uma doença letal.
A prática de “Lawfare”, “Soft Coup” e disseminação de
desinformação (“Fake News”) com o intuito de controlar massas
humanas pelo ódio e pelo medo não são práticas políticas, são práticas
anti-políticas, que interferem na Política, não possuem transparência, são de
difícil contestação e comprovação. Em oposição a Política que precisa acontecer
com transparência e preservar as instituições, a anti-política usa as
instituições, aparelhando-as, corroendo-as de forma não republicana e
democrática, de forma autoritária.
“Guerras Híbridas” são compostas por diversos expedientes, dentre
eles os mecanismos que descrevemos acima. Além deles, temos as “Revoluções
Coloridas”, que consiste na interferência de agentes pró imperialismo
estadunidense em manifestações populares. Conforme ocorreu no Brasil, em 2013,
quando uma manifestação local, em São Paulo, de esquerda, para que a passagem
do transporte público municipal não aumentasse, se transformou numa
manifestação federal, contra o governo federal, fazendo a popularidade da
presidenta desabar em poucos dias (Rousseff,2021). Evento que foi a antessala
do “Soft Coup” que viria a seguir, instaurando dois governos pró EUA. Outra
característica importante das “Guerras Híbridas” é que podem manter ações
permanentes de minar governos, com maior ou menor sutileza, a espera do momento
da ação principal.
IV - Relevância da educação cidadã e dos pactos coletivos para escolhas
políticas baseadas no respeito às sustentabilidades e ao cuidado coletivo
Procuramos demonstrar como o mundo contemporâneo globalizado apresenta
inúmeros desafios que ultrapassam fronteiras e exigem, portanto, a construção
de soluções a nível micro (família, bairro, cidade, grupos de trabalho, etc.) e
macro (países e relações internacionais).
Sem ações estatais, as ações da sociedade encontram limitações para a
solução de problemas complexos, conexos e abrangentes. Essas ações estatais são
sempre baseadas em projetos políticos e é nesse ponto que a educação e os
pactos coletivos entre estados-nação se encontram.
Os cidadãos precisam saber que toda ação de governos se baseia em
projetos políticos, que devem ser transparentes, de fácil compreensão. Os
estados-nação e governos precisam esforços para que não apresentem ações de
lógica colonialista, ou seja, um estado explora outro território, fica bem e deixa
um rastro de destruição e sangue, como solução de problemas coletivos mundiais.
Há que se abandonar o etnocentrismo, caso contrário, nos parece difícil que as
soluções sejam sustentáveis. Os oprimidos sempre reagirão e é legítimo que o
façam. Caso queiramos pactuar soluções sustentáveis para a vida humana na
Terra, teremos que nos colocar no lugar de todos os terráqueos.
As pactuações precisam ser inclusivas e solucionarem as questões
complexas de forma globalizada, tendo no horizonte que todos os povos e
territórios precisam viver em boas condições e que, sem isso, não há
sustentabilidade planetária, social e a crise do cuidado tende a se aprofundar
podendo gerar problemas ainda mais complexos para o mundo. A situação
planetária deteriora-se rapidamente e os desastres naturais, calamidades e
emergências humanitárias tendem a se acelerar, de acordo, caso nada seja feito
de concreto e não de discursivo.
Cada país tem decisões a serem tomadas a nível local e a nível global,
em soluções acordadas entre nações. A ausência de pactos coletivos com a lógica
inclusiva, em continuidade a uma lógica colonial, de benefício unipolar, de
carris colonial-exploratório, pode representar a extinção da vida na Terra,
além das inúmeras crises humanitárias que temos presenciado contínua e
ininterruptamente.
Como nos lembra
Han (2022) devemos ter ciência
de que somos seres planetários, “é necessário uma consciência planetária” e,
acrescentaríamos, ações como seres planetários. Concordamos com o autor de que
é “lastimável que a terra seja, hoje, tão brutalmente explorada. No entanto,
sabemos que a Terra sempre foi, e continuará a ser explorada. O que ocorre hoje
é que ou paramos ou não teremos mais condições vitais para nós mesmos, a
exploração predatória e irresponsável não tem mais campo para seguir.
Os projetos políticos, bases das ações estatais e governamentais,
consideram ou não as questões de sustentabilidade planetária e
sustentabilidade social, cuidado com as populações. Ou consideram
relativamente, investem um pouco em sustentabilidade e muito em colonialismo e
guerras, por exemplo. Há sutilezas na análise, porque são questões interligadas
que, no mais das vezes, são apresentadas sem nenhuma conexão. Essa é uma forma
de deseducar os cidadãos, pois não lhes mostram o quadro todo, pleno de
conexões, que devem ser consideradas na busca de soluções.
Os eleitores conhecem ou não como funcionam os poderes das repúblicas
democráticas (ou não democráticas, ou relativamente democráticas) e se formam
ou não cidadãos. E, nessa medida, sabem ou não o que é um projeto político e,
portanto, tem maior ou menor clareza sobre como votam e se organizam
socialmente para participarem (ou se omitirem) do debate público sobre questões
que dizem respeito às suas vidas e aos Direitos Humanos. A violação de Direitos
Humanos em qualquer parte do globo terrestre é violação do direito de todos nós
ou deve passar a ser, caso queiramos construir um mundo sustentável.
Todos os seres humanos fazem Política, que não se resume a política
partidária, ao voto, a questão é que alguns o fazem como cidadãos plenos,
conscientes e alguns o fazem como não cidadão, manipuláveis, pois não têm
consciência de sua condição de cidadania.
Entendemos que a mudança radical nos programas escolares, num
compromisso contínuo de mudança ética das relações escolares e comunitárias
pode ser uma das portas fundamentais por onde possamos encontrar a saída para
um mundo ainda ignorante sobre o fato de vivermos em um planeta, de sermos
seres plurais e em permanente relação (Heidegger, 2007; Arendt, 2010),
queiramos ou não.
Esse mundo é parcialmente ignorante, tanto da condição humana, quanto
territorial e habitacional da Terra. Ainda observamos análises acadêmicas ou
posturas políticas que vêem apenas um lado da situação como se, de fato, todos
os envolvidos não fossem humanos, com as mesmas necessidades e possibilidades.
É quando o humano, longe de conhecer sua condição plural (Arendt,2010) e
seu constituição de “ser-com” (Heidegger, 2007) desumaniza o outro (Mbembe,
2018). Não há possibilidade de desumanizar aquele que consideramos “outro” sem
nos desumanizarmos.
Não há possibilidade de termos um mundo sustentável, “casa comum” (Boff,
2022), sem que a terra não pare de ser saqueada, roubada, ocupada, sem que as
populações não parem de ser obrigadas a se deslocarem por colonialismo, guerra
ou ambos. Nem tão pouco sem que as populações dentro de cidades e países parem
de ser empurradas para as periferias, a viverem sem todas as condições de
cidadania.
A ignorância sobre saber olhar o todo pode ser resolvida com educação
para ampliar o olhar e se comprometer com a ética da colaboração e
co-contrução. A cegueira é tanto fruto de processos históricos complexos quanto
da herança do Antropocentrismo, que nos faz achar que não somos parte da natureza,
somos mais importantes e podemos explorá-la, sem cuidado (Krenak, 2020). A
herança que temos avinda dos processos históricos, é a herança dos
Colonialismos, ainda vigentes e atuantes em governos, causas e vidas, com suas
características deletérias e, em alguns casos, de forma irreversível, embasados
na crença de que uns são o centro e podem, ao atacar o “outro” e sua terra,
deixar um rastro de sangue em outros territórios ou roubar o tempo de vida de
outras pessoas para que as sirvam e trabalhe por elas.
A transformação das políticas públicas em Educação, escolas, sociedade e
família não pode mais manter-se orientada para a satisfação e o êxito
unicamente individuais, a competição, a disputa de poder e a subjugação, seja
de pessoas sobre pessoas, instituições sobre pessoas, países sobre pessoas ou
países sobre países. Nenhum tipo de subjugação pode orientar a ética dos
processos educacionais e as práticas educativas. No entanto, essas são as
premissas dos Colonialismos, do Neoliberalismo e dos Novos Fascismos, que longe
de estarem mortos, estão ativos e interligados globalmente, como salienta Da
Empoli (2020) ao descrever o funcionamento de “The Movement” e conforme
buscamos apresentar no item III.
A educação deve cultivar a reflexão a respeito da premissa e da questão
basilares para a criação de cidadãos: cada projeto político é um modelo de
governança, em qual projeto quero me engajar?
Nossa proposta é de uma educação focada na noção de que somos todos
membros da humanidade e moradores do Planeta Terra. Devemos nos comprometermos
em saber, e fazer, o que é necessário para mantermos nossa casa
habitável.
É preciso que aceitemos, e eduquemos para aceitar que, embora tenhamos
uma origem comum como humanidade e tenhamos um fim comum como indivíduos, a morte,
nós somos multiculturais, étnicos, multi religiosos ou sem religião. E devemos
aprender a conviver em paz, mesmo na discordância. Com debate e acordos, sem
nos basearmos na lógica da cegueira ao outro ou da opressão do outro.
A educação deve ser anticolonial, anti racista, anti misógina,
anti-homofóbica, anti capacitista, anti psicofóbica, anti aporobofica, anti
etnocêntrica.
Para a mudança, é preciso conhecer o passado histórico da Humanidade não
para nos vangloriamos por termos uma História pregressa de guerras, disputas,
domínios, roubos, violações, mas para não permitirmos que a diplomacia e a
Política sejam substituídas pela guerra, pelo derramamento de sangue, pela
repetição dos atos e decisões históricos que trouxeram, e trazem, no presente,
o planeta Terra à insustentabilidade.
Para termos idéia da importância que temos dado à emergência climática e
a não destruirmos o planeta e não deslocarmos populações, em 2022, os EUA
gastaram 877 bilhões de dólares em armamentos (Carta Capital, 2023) e 13,5
bilhões para preservação do meio ambiente (Globo, 2023). De 2000 a 2022, os EUA
estiveram envolvidos diretamente em sete guerras (UOL, 2022).
Nesse momento, 2023, o Brasil, um dos países amazônicos, produz com 48%
de energia limpa, sendo que a média mundial é de 14% e 11% para os países da
OCDE (Governo Federal do Brasil, 2023), isso significa dizer que a Amazônia,
que pode representar a salvação do planeta e da vida humana na Terra, ainda tem
que compensar a energia “suja” da produção de países, que já destruíram suas
florestas e ainda não efetuaram a transição ecológica para produzir. Sem que os
povos tenham acesso a essas informações e possam pressionar os governos, ou
possam mudar os governos, dificilmente o debate sobre sustentabilidade não acaba
por ser lento e ineficiente, em relação à velocidade da destruição do planeta.
Precisamos primeiro falar na insustentabilidade provocada e promovida
pelos países mais ricos e mais desenvolvidos, no mais das vezes, a custa de
colonialismo, guerras e golpes de estado em territórios alheios. Precisamos
atenção aos fatores da insustentabilidade planetária e social, caso contrário,
não atingiremos a sustentabilidade.
Além da Educação, nos parece urgente uma organização mundial em defesa
dos valores sustentáveis e humanitários. Diante da organização mundial da
extrema-direita, negacionista da emergência climática, da ciência e que vê a
educação não como forma de expansão e abertura de consciências para a
convivência democrática e cidadã, mas como forma de controle das consciências,
fornecendo respostas fáceis e falaciosas para temas extremamente complexos
(Applebaum, 2022), criando redes de ódio e medo, manipuláveis, através da
disseminação de desinformação por redes sociais (Da Empoli, 2020) seria
fundamental uma organização mundial dos projetos políticos progressistas ou de
esquerda (Santos, 2019), favoráveis à ciência e, portanto, às
sustentabilidades, planetária e social. No entanto, não é suficiente.
A Organização Mundial das Nações Unidas, a despeito das agências
fundamentais (de combate à fome, de apoio aos refugiados, de apoio permanente à
Palestina ocupada) não tem conseguido manter, num mundo multipolar, os
propósitos pactuados no período pós-guerras. Esse pacto precisaria ser
reconfigurado para o mundo do presente, mais democratizado e multipolar, e não
ser um pacto beneficiário dos países que pretendem manter seu poderio e não
aderirem projetos civilizatórios como, por exemplo, o Tribunal Penal
Internacional, em Haia, capaz de investigar, julgar e punir ilícitos que não
encontram espaço judicial para serem tratados em seus países de origem. Por
exemplo, EUA e Rússia não fazem parte do TPI.
A “educação cidadã” para a democracia, conforme mencionamos, incluiria a
educação formal e a educação social e comunitária, participativa, o que
significa abertura de diálogo, negociação e construção de consensos,
solidariedade ao nível micro e macro. É desafiadora essa mudança, num mundo
dividido por novos fascismos (Traverso, 2021) e por identitarísmos (Maloouf, 2022),
ambas as condições e formas de colocação no mundo que, por vias e objetivos
diferentes, tendem ao divisionismo e a interdição do debate e são
entraves para a criação de um campo comum (Da Empoli, 2020) para as
negociações, necessárias diante da pluralidade da condição humana (Arendt,
2010)
Conclusão
Sustentabilidade é um tema próximo, cotidiano, ordinário, não é um tema
extraordinário, restrito aos que se interessam por ele.
Buscamos frisar que todos os temas referentes ao coletivo são tratados a
partir de ações políticas, ações essas baseadas em projetos políticos, que
devem ser conhecidos pelas populações. E que a lógica do Neoliberalismo, um
projeto político que tem se aliado aos fascismos, é individualista e
competitiva. Ao mesmo tempo, procuramos salientar o quanto é basilar para a
solução da insustentabilidade planetária e social, que ações estatais em sejam
empreendidas, intra países e entre países, além do incentivo a solidariedade
comunitária, reforçando os laços dentro das comunidades e entre comunidades.
Embora, o aquecimento climático seja primordial, já que sem solucioná-lo
não será mais possível vida na Terra, é necessário compreendermos que, mesmo
com a questão climática revertida, não há sustentabilidade no planeta com
colonialismo, desigualdades sociais e sem estados sociais fortes, que cumpram
sua missão de proteção ao cidadão, de cuidado cuidadoso.
A atenção para com a Saúde Pública, ao lado de moradia, educação,
mobilidade e direitos civis plenos, bem como a reversão do aquecimento
climático, são basilares para a integridade cidadã e sustentáculos para o que
denominamos neste artigo, sustentabilidade.
Sustentabilidade e defesa da Saúde Pública, dos demais direitos sociais
e civis passaram a ser vistos como “pautas de esquerda”, geradores de gastos
desnecessários para o Estado. É necessário que esta deformação seja corrigida,
entendendo-as como “pautas humanitárias”, sob pena de extinguirmos a
possibilidade de vida no planeta Terra ou de termos que lidar com catástrofes e
pandemias de difícil manejo e crises humanitárias que poderiam ser minoradas,
ou impedidas, com a ação planejada dos poderes públicos.
Até compromissos firmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos
passaram a ser vistos como “pautas de esquerda” por grupos políticos de
extrema-direita. No Brasil, por exemplo, repete-se dentro da extrema-direita o
bordão “Direitos humanos para humanos direitos”.
As áreas de Saúde e Sustentabilidade, fundamentais para a existência
humana, serem consideradas como “gastos desnecessários para o estado”, embute o
desprezo pelo conhecimento acadêmico, com base em evidências, e embute a crença
na descartabilidade de algumas vidas, que passam a serem descuidadas,
negligenciadas, invisíveis, não-vidas (Mbembe, 2018).
O neoliberalismo, os fascismos e os regimes coloniais racistas seriam
sustentáveis sob o ponto de vista da preservação planetária e da proteção
social, de cuidado com a vida de todos ao longo do ciclo vital?
Poderemos continuar a falar em sustentabilidade planetária e investimento
em armamento e em guerras, simultaneamente?
Poderemos continuar a falar em sustentabilidade social aceitando
racismo, “apatheid” e colonialismos?
Poderemos continuar a falar em “cuidado” sem proteção social para todos?
Poderemos continuar a falar em cuidado com destruições e deslocamentos
forçados de enormes contingentes por guerras coloniais ou por falta de
prevenção em catástrofes?
Sobre essas e outras questões referentes ao tema e suas complexidades é
que o mundo acadêmico precisa continuar a se debruçar para uma contribuição
efetiva para a sociedade e para os projetos políticos, que embasarão as
decisões sobre o planeta, a saúde, a educação e a diversidade humana.
Uma produção acadêmica que não seja radicalmente atenta ao contexto no
qual os fenômenos que existem são possíveis, que não seja capaz de fazer as
perguntas corretas e atender à complexidade dos temas, não estaria a contribuir
como pode para o cuidado cuidadoso do planeta, dos seres vivos e mesmo da
diplomacia e da Política como formas de solução de problemas e conflitos.
Soluções coletivas são as mais sustentáveis.
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Todas as referencias
da web foram consultadas no mês de novembro de 2023.
*Cristiane Jatene é psicóloga, historiadora, mestre em "Sociedade, Risco e Saúde".
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